16 de dezembro de 2009

o pseudo-estatuto de um licenciado...

Nos últimos meses as minhas relações e contactos sociais multiplicaram-se em catadupa, em várias áreas, em vários campos, o que até é estranho já que coincidiu com uma rotura de funções na área profissional, logo, até seria de supor que me acontecesse o fenómeno contrário. Mas não. Lamentavelmente o que acabei por viver foi uma libertação, que me possibilitou novas alternativas e abriu outras portas. Bendita rotura. Mas não é disto que quero falar.

Quem me conhece sabe que sou calona a falar. Tenho um linguarejar um tanto rafeiro. Eu diria é que sou descontraída e digo as merdas como bem entendo e me apetece, sem grandes rapapés. Também é verdade que a minha ligeira dislexia não ajuda e que prefiro ouvir do que falar... Quem não me conhece, por isso, não deve dar 10 cêntimos por mim. Só assim consigo perceber um outro fenómeno com que me deparo nesses vários contactos que tenho estabelecido em várias áreas: toda a gente gosta de realçar que é licenciada (quando o é), sem que o assunto sequer venha à baila, como se isso fosse um traço de superioridade ou uma forma de marcar território sobre nós. Quando eu menciono que sou jornalista desenham a expressão mais esbugalhada do mundo e metem o rabinho entre as pernas.

Menciono isto para quê? Para deixar aqui duas ou três ideias sobre este assunto que já me andam a arreliar há uns tempos. Neste país que se diz moderno e primeiro-mundista (apesar da merda em que vivemos), ainda há muita aresta medieval para limar, começando pelas mentalidades, aquelas para quem ter um curso superior é sinónimo em si de superioridade, em cidadania, em personalidade, em humanidade. Mas o defeito deve estar, logo à cabeça, na própria designação de "curso SUPERIOR" (mas há inferiores? e que superioridade ele dá?)

Conheci há tempos uma professora de pintura, uma artista reconhecida, com alguns prémios ganhos e obra exposta em algumas galerias, que a primeira coisa que fez ao apresentar-se a mim foi dizer "sabe que eu sou licenciada... ainda que em Português...", uma espécie de mote estilo "alto aí, minha menina, que agora vais ouvir caladinha a senhora licenciada falar que tenho muita bosta para dizer". Só ao fim de três quartos de hora de blá-blá-blá, eu praticamente a consentir tudo o que ela dizia (porque era de meu interesse) é que ela me perguntou "e você o que faz?", eu, no meu jeito calão de sempre, limitei-me a responder "sou jornalista", mas a resposta correcta e à altura dos acontecimentos seria "sou licenciada em Comunicação Social pela Universidade do Minho, jornalista e fotojornalista", mas o "sou jornalista" para mim basta sempre, para quê revelar mais da minha intimidade? (lol).
A senhora expressou logo a mesma expressão que toda a gente faz quando digo o que faço (why? é uma profissão como outra qualquer e hoje em dia até é sinónimo de futuro-caixa-de-hipermercado. mas parece que a ideia nostálgica de mediatismo e poder inerente à figura de um jornalista perdura na cabeça da maioria...). Adiante.
Como todos os que acabam por ter conhecimento do que faço, logo a toada do discurso dela se alterou e de imediato se seguiu a entrevista da praxe: "E onde é que tirou a licenciatura? (...) E para que órgão trabalha? (...) Ah!... Gosto muito da vossa revista.. Sabe que conheço muitos jornalistas (citação de vários nomes...)" e logo se segue a tentativa de meter cunha para uma reportagem... (oh dear...)

Já tive casos em que foi a falta de rigor técnico na minha linguagem que me tramou, como se isso tirasse valor à minha licenciatura ou me reduzisse a competência.
Numa ida a tribunal recentemente em que fui testemunha (não interessa agora do quê), fui desafiada pela advogada da parte contrária a comparar duas capas de duas revistas distintas. Como não julguei que o pedido em causa tivesse qualquer relevância para a essência do que estava a ser julgado, despachei o assunto apontando diferenças e semelhanças e a parva da advogada vira-se para a juiz e manda a farpa "assim vemos a diferença também na competência. Pudemos constatá-lo comparando com a mesma descrição altamente tecnicista realizada pela testemunha anterior (que era o director da outra revista)".
Fui anjinha, claro, porque para além de não me terem preparado para o que me podia apanhar pela frente naquela sala, também já deveria saber (por experiência própria) que os advogados são tramados. Mas eu, que não me contive com a boca da parvalhona, respondi à letra "então esta 'rasteira' tinha por intuito tentar menosprezar a minha competência, logo desvalorizar o meu testemunho? Saiba que a competência de um profissional não se mede em respostas preparadas para serem dadas em tribunal." e em seguida dei-lhe uma lição de como se faz uma capa de uma revista, ou melhor, as capas que produzi, detalhando toda a estratégia desde escolha de cores, posicionamento, fotos escolhidas, temas e toda a lógica sequencial, que não pode ser esquecida, de edição para edição, mês para mês, para ter em conta o tipo de leitor de que se trata, que por norma colecciona estas revistas. E a verdade é que tanto a advogada como a juiz ouviram e calaram.
Essa mesma advogada mostrou ainda em tribunal como a mentalidade de uma profissional liberal pode ser preconceituosa. Mais uma vez tentou armar-se em chica-esperta e pegou numa resposta minha em que descrevi o perfil de leitores da revista e mencionei, entre outras coisas, que era um "público conhecedor, especializado, exigente" (a testemunha-director do lado contrário descreve-os como "ignorantes e com fracas habilitações literárias", numa tentativa de provar em tribunal que não sabiam distinguir entre duas revistas distintas da mesma área...), logo a seguir eu tinha acrescentado que era também um "público apaixonado, fanático" e dei como exemplo "só assim se explica que, por exemplo, um miúdo com 20 e poucos anos, que trabalha na construção civil, consiga gastar 5 ou 10 mil euros a transformar um carro". E foi precisamente nestas palavras que a dita advogada pegou para tentar apanhar-me em contradição: "você disse que era um público exigente e esclarecido e depois falou em 'miudo da construção civil'... então reconhece que é um público com pouca instrução?"... achei deplorável e pobre aquela lógica e gostei de ser confrontada com ela, porque aproveitei para desancar a senhora (com classe, tá?): primeiro, disse-lhe para ela não distorcer as minhas palavras e não pegar num exemplo isolado que dei, para generalizar; depois para não dar outro sentido ao que eu disse porque ao referir 'trabalhador da construção civil' não mencionei 'pouca escolaridade' ou 'ignorância' e a partir daí acrescentei "a associação das ideias 'trabalhador da construção civil' e 'pouca instrução' está um pouco ultrapassada, basta olhar à sua volta e reparar quantos licenciados já não procuram trabalho nessa área. Além do mais, hoje em dia, na era da circulação massiva de informação, na era da democratização da internet, qualquer 'trabalhador da construção civil' tem acesso a ela, onde prolifera o melhor da sua paixão; acabam por isso, por familiarizar-se com o inglês, com as expressões mais marcantes que são inclusive transpostas para o português e para a imprensa nacional da área e nem por isso precisam de dominar a língua, de ser poliglotas, o que os torna, sim, leitores exigentes e especializados, mesmo tratando-se de meros 'trabalhadores da construção civil'. Além do mais, é bom acrescentar que público que lê estas revistas é bastante heterogéneo e há leitores de todos os extractos sociais e faixas etárias; o que os une é simplesmente este gosto".
No final, a tipa perguntou-me há quanto tempo exercia jornalismo e escrevia sobre esta temática (numa tentativa de desvalorizar o meu testemunho, por ser jovem e menos experiente que o director da concorrência) e por fim perguntou "onde posso encontrar a vossa revista?" uma pergunta com veneno, já que a mesma está suspensa. Eu respondi "Penso que, apesar de suspensa, ainda pode ser que tenha a sorte de encontrar um dos últimos exemplares à venda. Mas apresse-se a comprar a do seu cliente, já que é público que a que está nas bancas é também o último número, com a diferença de que eu não tive que enfrentar nenhum processo sumário de despedimento" (ui, com esta fui mesmo mázinha... mas também foi ela que me picou!) e assim terminou a minha prestação na minha estreia numa barra de tribunal...

Nestes episódios repetidos acabo por gozar o momento e rio jocosamente por dentro. Fora esta excepção em tribunal, geralmente deixo passar incólume a boca do "sou licenciado(a)" e cago no assunto. Mas um dia que me apanhem mais avessa talvez destile neles um discurso moralista que passe por verdades duras como "que adianta ser licenciado se são estes os que mais pesam na estatística do desemprego actualmente?" ou "Qualquer merdoso hoje é licenciado" entre outros argumentos poderosos deste género...

Mas o meu saco vai esvaziando perante tanta falta de substrato e humildade. É. Há por aí muito nariz empinado*, muito do "eu é que sei!" e se há coisinha que tenho aprendido é que caladinha aprendo mais e aprendo sempre seja com o varredor de rua ou com o professor catedrático...

* olha, eu, por exemplo!...

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